domingo, 15 de maio de 2011

Minha língua é minha farsa.

MINHA LÍNGUA É MINHA FARSA
Daniel Arcades

            Dentro de casa. Uma língua afetiva. A do bom filho que pede o almoço a mãe, que desconhece os palavrões e não ingere álcool de maneira nenhuma. A língua do garoto de dentro de casa é aquela que não se preocupa com a formalidade, mas mantém a ordem nela e ai dele que não mantenha... Xingar na frente da mãe? Nem pensar! Não sejamos tão informais, não é, mamãe?
            Na escola. Uma língua exibida. A do estudante que sabe falar um monte de coisa, dos estudos químicos, a “pegação” do beco escuro. A língua do estudante é aquela que quer mostrar sapiência e ao mesmo tempo estar inteirado nas situações cotidianas joviais. Na escola é que xingar sem mamãe  e professor ver. Palavrões? E lá que se aprendem todos os substantivos obscenos para serem utilizados em advérbios proibidos e falar e ouvir adjetivos.
            No trabalho. Uma língua mais séria, mais adulta. O trabalhador sabe que a sua língua tem de ser diferente. Ela tem que ser mais preguiçosa, o inverso das suas mãos. A língua tem de trabalhar menos para não complicar a caixa que a guarda. A língua do trabalhador só diz o necessário, e isso inclui reclamar do salário.
            Na cama. Uma língua muda. As onomatopeias aparecem em interjeições fantásticas.  O amante faz uso dos sinais com ela, percorre os caminhos mais dignos de serem desbravados no corpo de alguém e fala pouco, muito pouco.
            Na boca. A língua mentirosa. As diversas características que ela assume e se apropria de forma tão convincente das características do momento, que chego a pensar que é real o que se passa ali. Filho, estudante, trabalhador, amante. Ai, que loucura! Qual é a minha língua? Qual é a que assumo?
            Não há minha língua. “Mamãe!”, o filho é o que a mãe quer que seja. “Sim, professor”, “Porra,borá filar?”,  o estudante é o que os outros alunos e professores querem que seja. “Boa tarde a todos que aqui se encontram reunidos...Pois não, senhor.”, o trabalhador, esse não precisa nem falar. “Ai! Ui! Ai!”, e o amante quer dar prazer, e só. Minha língua, só e somente minha,  não existe. É a sua língua. A língua que você quer com o paladar que desejar. E mente mente, acredita que eu digo algo.
            Em tudo há um pouco de mim. E em tudo há farsa em mim.

O almoço dos olhos


O almoço dos olhos


            Como fogo. Era assim que as íris flamejantes gritavam dos olhos de Diogo e recebiam o descaso que sussurrava pelo olhar consciente de Camila. Faca na mão. A briga entre o fogo e a água era de cortar o coração de Mariana, pobrezinha, tão nova e já envolvida numa das situações mais dificultosas do homem. Um corte ágil da faca. Por menor que seja a morte, a terra chora em todas elas. O chão de Diogo, embora matasse sugando para o núcleo da terra a história passada, chorava. Mariana tinha a água nos olhos, mas era de ar. Tão leve a sua aura e tão puro o sentimento daqueles olhos castanhos que não podia, não merecia presenciar as situações que colocavam a dualidade de caráter das pessoas que ela mais amava em jogo.Vários cortes:
            - Dá pra você parar de fazer o almoço? Talvez hoje ele não seja mais necessário.
            As mãos de Camila travaram. Faca na mesa. A cachoeira de confiança própria que saltava dos olhos de Camila causou um desespero maior ao fogaréu que acompanhava a pele de Diogo. Ela sabia que hoje haveria almoço naquela casa e que a faca precisava continuar a cortar. Mas as mulheres sabem ceder na hora certa, sabem que os homens ingenuamente acreditam na sua potência ditatorial. Elas são o Chico Buarque escrevendo Cálice e eles, a censura deixando a música tocar nas rádios. Voltemos à faca na mesa. Aquele objeto precisava voltar a cortar e fazer do meio-dia mais um momento rotineiro e necessário:
            - O que foi? Nós vamos almoçar fora?
            - Camila, por favor. Não ache que está tudo normal na situação em que nos encontramos.
            -E o que há de errado?
            -A nossa relação.
            Mariana entendera o que estava acontecendo naquela cozinha e não sabia se voava como furacão dali ou apareceria em brisa tentando acalmar aquela confusão de elementos. O fogo estava alto e a água não era suficiente para apagar aquele incêndio. E a culpa era de Camila:
            -Minha culpa? Minha culpa? Foi justamente por amor que me entreguei a esta situação. Simplesmente para conservar um amor de uma longa história que me dispus a fazer essa façanha. E agora estou sendo julgada por esses homens que nada sabem de amar. O que me ama e o que me escreve. Ambos não entendem a minha ação. Continuarei a cortar a carne que será servida em pouco tempo.
            Faca na mão. Jogo de olhares. Um indignado, o outro, receoso, mas confiante. Aqueles olhos que enchem o espaço de palavras traduziam todo o diálogo para Mariana, que continuava com o mar a desabar nas pálpebras. A sua vontade era de soprar todo aquele momento. E ela não sabia se a faca de fato, permaneceria a trabalhar:
            - E você, sabe de amar? – indagou Diogo recebendo um pouco de água nas labaredas dos olhos.
            - Não, não sei. Mas sei que é muito mais do que a noite que tive e muito menos do que você pensa ser. Sei que depois de certo tempo ele toma outras dimensões e tem outras necessidades, que ele compreende, que ele não está em VOCÊ. Embora passeie por nós dois.
            - Ele não é de dar passeios e sim de colocar pregos no chão e fixar-se em um lugar.
            -Pregos machucam e ele não faz isso.
            -Passeios podem não ter voltas.
            -O caminho sempre existiu, cabe ao homem querer ou não andar de ré.
            -É difícil voltar quando se passeia por lugares diferentes. Se ele só quer passear por nós, diga a ele que dispenso a caminhada e prefiro procurar outras mãos.
            Não era isso que os olhos de Diogo queriam dizer, mas o olhar de Camila ouviu perfeitamente aquele fogo infantil, romântico, que já não era mais para existir faz tempo.
            - E você vai terminar a história aqui? – Indagou Camila,já sabendo qual resposta seria.
            - Vou terminar um capítulo dela. A história não tem por que acabar. O protagonista dela ainda vive.
            - E pode ficar tranqüilo que ele também terá um final feliz como todos os outros protagonistas: A mocinha e o mocinho vão viver felizes para sempre.
            Ponta da faca na pia. Olhares sedutores. Não, ainda não é o momento da troca de órgãos na narrativa, continuemos a falar de olhares, pois são os que dizem a verdade e são capazes de traduzir tudo o que se passa na história com maior veracidade nesse humilde papel. As mãos de Camila nunca ficaram tão firmes no cabo da faca e agora não era para cortar nenhum legume. Aquele era o seu mastro no momento e suas duas mãos seguras elevavam os ombros da mocinha que se tornava majestade naquele instante:
            - Sabe por que a história não acaba aqui, Diogo? A narrativa vem sendo muito calminha. Até então, os nossos gritos não tiveram a ênfase necessária para dar emoção a essa historinha tão repetida e tão cotidiana. – dizia a boca que estava abaixo dos olhos sedutores femininos -  Atire a pedra em mim, Jesus Cristo. Vamos, atire.
            - Essa “historinha” cotidiana não devia ter entrado nessa casa! Não é caso de atirar pedra, mas de cuspir na cara. E o clímax da história aconteceu muito antes do conflito. As suas mãos e o seu sexo foram os grandes personagens desse digno  folhetim das oito.O mocinho é sempre o sem sal, não é mesmo?
            - Mas é ele que arranca suspiro das jovenzinhas e despertam a vontade do matrimônio. Você ainda é meu, Diogo. Eu casei com o mocinho. Que traz os beijos cheios de amor, de segurança, de continuidade. – Dizia Camila. Dizia os olhos. Dizia o sorriso.
            Os lábios femininos tomaram os dedos de Diogo. Apesar de sensual, aquilo era uma fronte e a discussão não podia avançar de tamanha forma. Uma linda cascata saltava dos olhos de Camila, e desabava sobre seus lábios que molhavam cada vez mais os dedos de Diogo, as mãos, os braços, o peito, a barriga...:
            - Mãe!
            Era Mariana. Havia decidido sair como furacão e correu para os braços da mãe sem querer enxergar aquela cena. Apesar da pouca idade, a menina sabia que aquele jogo poderia trazer um tornado dentro da casa nesse dia. Eram três olhares que se confrontavam agora e não sabiam qual era a próxima ação, o fogo ainda queria incendiar a casa, embora o vento e a água estivessem prontos para apagar a chama que ali se instalara. Mariana percebeu a situação de guerra. Eram elementos distintos que vão lutar livremente na selva interna de um casal. Seus olhos não podiam tirar todo o lirismo que a figura do pai e da mãe traz na cabeça de uma pequena. E percebendo que não devia permanecer ali, pois a guerra já estava instaurada, Mariana pediu humildemente à mãe:
            - Me tranca no quarto?
            E sem muita pena, a mãe trancou a espectadora no quarto. Era melhor não haver saída para que o vento não atrapalhasse a guerra de olhares. Camila volta do quarto. Faca na mão:
            - Diogo, tira isso da sua mão.
            A faca que cortara tomates e carne estava prestes a cortar a pele de Camila:
            - Não, ele não teria coragem. Não é homem o bastante para isso. E essa faca mais o assusta do que encoraja. O coitado queria ter ao menos um momento de loucura na vida, mas ele não consegue, não tem autenticidade o bastante para assumir uma loucura. Os homens são fracos e mentirosos. Conseguem construir um mundo, mas não conseguem se construir.
            Os sorrisos de Camila agora falavam mais que o olhar. Ela chegou perto dele (eis o momento de narrar as falas de outros órgãos) e sorriu. Aquele sorriso era talvez o maior grito de orgasmo que uma mulher pode ter dado. A faca agora estava sendo segurada por quatro mãos. Um corte. Dois cortes. Vários Cortes.Nenhum sangue.
            Camila estava entregue como nunca esteve ao seu marido. Seu vestido todo fatiado estava pelo chão e seu corpo nu era banhado pela energia da certeza da fragilidade de Diogo. Seu sexo pulsava e ela, de água, molhava seu corpo com o gozo daquele momento. As mãos de Diogo não queriam passear pelo corpo da esposa, mas de olhos já bastam todas as páginas anteriores. É preciso fazer outra coisa, modificar.
Faca no chão. Corpo na mesa. Banquete a ser servido:
            -Sabe por que você não vai me deixar? Porque precisa disso. Precisa de mim para não mudar. – disse Camila entre a respiração ofegante e os sons de gemidos que exortavam seu corpo.
            Diogo está pronto para terminar a relação, mas aquele corpo o tomara como carne e o fizera humano novamente. E estava certo de fechar o capítulo com o término do romance entre o mocinho e a mocinha. As mãos passeavam, os sexos encaixavam, os olhares não se cruzavam e o suor misturava. É na cozinha que se esquenta comida e hoje, segundo Camila, um banquete estava sendo servido:
            - Sabe por que você é meu? Porque nossa filha existe, porque somos um casal lindo para a sociedade, porque faço seu almoço, sua janta. Por que precisa do meu corpo para satisfazer a periodicidade de luxúria do teu.  Porque uma traição só é feita para consertar erros e o nosso já está consertado.
            Não era possível! Porque Camila tinha que tocar nesse assunto logo agora? A traição não é um fato para ser lembrado. Se Diego morresse sem saber disso, os sorrisos permaneceriam tomando conta da história e não apareceriam olhares que explodem em fogo ou em água. O corpo de Diogo desencaixava do dela por conta da maldita frase. Seus olhos voltaram a falar.A faca permanece no chão, o vento no quarto e a disputa no centro. Diogo não quer mais Camila:
            -Percebo que o homem que me escreve nada entende de situações de relacionamento. Eu contei porque quis, para acordar e levantar o que já estava quase enterrado em cimento. E a sua narrativa está errada: Diogo me quer, e muito.
            - Você me tem, Diogo. E eu sei que te tenho, somos a aparência do mundo, a constituição de todo sistema que encontramos. Somos mais dois. E você não vai conseguir ser só mais um. Somos mais dois. As situações passam e continuam a passar. E é só uma vida para estragar. Diogo, essa merda aqui é pra fazer o que bem entender e pra viver, somente viver.- falou Camila justificando a função de ser louca. -  Vou preparar o almoço.
            Diogo estava decidido a sair dali. Muito sínica essa mulher. Toda crise será uma possibilidade de adultério? As coisas são tão naturais assim? Qual a importância de ter uma família na sociedade? No emprego? Diogo não confiava mais na mulher.Faca na mão. Comida na panela. É domingo, meio-dia.Vento no quarto, cheiro na casa:
            - Mariana, vamos almoçar. – Chamou Diogo.
            E a brisa tomou mais uma vez conta da casa. E os sorrisos tomaram conta dos corpos novamente. Mariana sabe que muita coisa mudou, mas prefere entender que elas são mesmo assim. Tão nova, coitada, e já foi obrigada a conhecer a crueldade das convenções.
            Os valores nunca existiram.As verdades são mentiras.
            A faca sempre corta, sempre cortará e ainda fere.


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Conto escrito no segundo semestre de 2008 para o componente curricular Tipologia Textual. 

SER FUNIÔ



Tive contato com esta carta no terceiro semestre da faculdade e até hoje me recordo com muito carinho dela, pois me ensina a verdadeira estratégia que um subalterno deve ter, não foi nenhuma grande teoria, mas a carta deste menino, que me sensibilizou e me ensinou.